PEC revela desprezo pelo cidadão, afirma economista

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 12 está em tramitação no Senado. Conhecida como a PEC dos precatórios, a matéria foi proposta por Nelson Jobim, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) em meados de 2005. Desde então, a proposta tem recebido críticas. O Painel do Servidor divulga hoje a análise do economista Marcos Cintra sobre a PEC dos precatórios publicada no jornal Folha de S. Paulo do dia 19/02. Doutor pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas, Cintra classifica a proposta como indecente. “A PEC é mais uma dessas infamantes propostas que revelam desprezo pelos cidadãos”, afirma o economista. Leia mais.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 12 está em tramitação no Senado. Conhecida como a PEC dos precatórios, a matéria foi proposta por Nelson Jobim, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) em meados de 2005. Desde então, a proposta tem recebido críticas. O Painel do Servidor divulga hoje a análise do economista Marcos Cintra sobre a PEC dos precatórios publicada no jornal Folha de S. Paulo do dia 19/02. Doutor pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas, Cintra classifica a proposta como indecente. “A PEC é mais uma dessas infamantes propostas que revelam desprezo pelos cidadãos”, afirma o economista.

MARCOS CINTRA – Calote constitucionalizado

O projeto que permite que os governos definam quanto pagarão de precatórios revela desprezo pelo cidadão Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? (Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?) Cícero, 106-43 a.C.

ESTÁ EM tramitação no Senado uma proposta indecente: um projeto de emenda à Constituição que, se aprovado, comprova exuberantemente a tibieza do caráter cívico dos brasileiros, que tudo aceitam, tudo acomodam, mesmo sendo alvos das mais odiosas injustiças e perversidades.

Não estou me referindo à violência física que grassa livremente em nosso país. Por sinal, já assinei o manifesto virtual que circula na internet a favor de medidas urgentes para evitar que continuem ocorrendo barbaridades como a que acometeu o menino João Hélio. Mas não consigo evitar o mal-estar no estômago ao imaginar que, como antes, nada vai acontecer.

Lembro-me dos inúmeros outros momentos de extrema comoção causados por crimes bárbaros cometidos contra outros inocentes e que não resultaram em nenhuma providência efetiva contra o estado de barbárie que impera no Brasil.

Sempre surgem os “comedidos”, os que apelam a um tipo imbecil de serenidade que acaba impedindo a sociedade de se defender e de adotar medidas emergenciais capazes de atenuar os males que a afligem. As soluções são sempre adiadas, à espera de momento mais oportuno, de menor emoção. Essa ridícula tolerância torna o brasileiro uma população de seres destituídos de vontade, de sentimento de indignação e, sobretudo, sem capacidade de mudar, de reformar, de melhorar. Essa tolerância, que, como disse Marquês de Sade, é a virtude dos fracos, tem tornado o Brasil um país de néscios, de indiferentes, de egoístas e de mortos-vivos sem sangue nas veias. Vivemos em uma geléia geral, sem princípios, sem regras, sem destino, em que vale tudo, onde impera a truculência do mais forte na política, na economia, na vida urbana, nas relações pessoais.

O projeto de emenda constitucional nº 12/2006 é mais uma dessas infamantes propostas que revelam desprezo pelos cidadãos. Pelo projeto, a União, os Estados e os municípios poderão “optar, por ato do Poder Executivo”, e definir o percentual (mínimo de 3% para Estados e 1,5% para municípios) de suas despesas primárias líquidas que será utilizado no pagamento de precatórios. O pagamento será feito em grande parte mediante leilões, nos quais os desesperados credores, tal qual os gladiadores na Roma Antiga, vão se trucidar mutuamente para receberem frações ínfimas do que lhes é devido.

É evidente que os 3% serão teto, e não piso, dos pagamentos. Algumas contas elementares mostrarão que a grande maioria dos governos que têm precatórios a pagar poderá jamais saldar integralmente as dívidas contraídas, mesmo tendo sofrido condenação pelo Poder Judiciário, sob pena de intervenção, segundo a Constituição.

Se aprovado, o Estado continuará espezinhando os direitos dos cidadãos brasileiros que têm valores a receber do governo; a Carta Magna continuará sendo desrespeitada pelo próprio Poder Judiciário, que tolerantemente não decreta as intervenções; e os políticos continuarão a zombar até mesmo daqueles que têm precatórios alimentares a receber. Os precatórios devidos apenas pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios somam cerca de R$ 63 bilhões. Isso dá uma idéia do tamanho do calote. São Paulo, o mais rico -e pretensamente saneado- Estado da Federação, pagou no ano passado precatórios alimentares que deveriam ter sido quitados em 1998.

O Estado esquizofrênico mostra suas duas faces: o mau pagador de um lado e o eficiente agente arrecadador de outro, aprimorando sempre suas garras fiscais, como acaba de fazer com a criação da Super-Receita.

A aprovação da PEC 12/2006 é o calote constitucionalizado. Como diz a Ordem dos Advogados do Brasil, “a PEC viola a coisa julgada, o direito adquirido, a moralidade administrativa e a dignidade da pessoa humana”. Vale dizer que os direitos dos credores do governo já foram legislativamente violentados duas vezes. A primeira, quando foram parcelados em oito vezes (1988); a segunda, em mais dez vezes (2000). E agora mais essa indignidade.

A paciência se aproxima tanto do desespero que só nos resta alertar, como fez o poeta inglês J. Dryden, a tomar “cuidado com a fúria do homem paciente”.

MARCOS CINTRA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE, 60, doutor pela Universidade Harvard (EUA), professor titular e vice-presidente da Fundação Getulio Vargas, foi deputado federal (1999-2003). É autor de “A verdade sobre o Imposto Único” (LCTE, 2003). Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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